quarta-feira, 3 de abril de 2013

Identidade

Matei a lua e o luar difuso. 
Quero os versos de ferro e de cimento. 
E em vez de rimas, uso 
As consonâncias que há no sofrimento. 

Universal e aberto, o meu instinto acode 
A todo o coração que se debate aflito. 
E luta como sabe e como pode: 
Dá beleza e sentido a cada grito. 

Mas como as inscrições nas penedias 
Têm maior duração, 
Gasto as horas e os dias 
A endurecer a forma da emoção. 

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A mercê do tempo


Do que vale o tempo se não é possível compreender que um dia não estejamos mais a sua mercê?

Outrora quando pensávamos sobre o amanhã não tínhamos porque temer o futuro por sermos livres. Hoje quando olhamos para trás calculamos a desventura que pode nos sobrevir por estarmos presos ao que se passou.

Recorre-se a este ou aquele truque, planeja-se uma ou outra artimanha para dar tudo que nos aflige ao esquecimento, mas de nada vale isso se não estivermos prontos para o que desconhecemos e não aprendemos a conhecer.

Vagamos inúteis por uma terra que presenciamos dias, noites, ventos, tempestades, luz, sombras, sem se dar conta que fazemos parte de cada ato encenado pela natureza? Essas coisas não nos pertencem. Pertencemos a elas. Duma forma ou outra somos uma nota dentro ou fora do compasso do tempo.

Afinados ou não com o percurso das horas, minutos ou meses e anos, nada podemos fazer para refrear o tempo ou incomodar seu passo largo. Resta dar sentido ao que não controlamos de maneiras tão sublimes e clamorosas que quando o tempo finalmente nos reter entre seus dias, horas e minutos estejamos livres novamente. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Tratado sobre a embriaguez




Todo aquele que se embriaga deveria saber as razões pelas quais se embriaga. Ao menos por prudência e sabedoria.

Encher a cara não te fará mais sábio ou prudente com toda certeza, mas saber os motivos certos para se embriagar é uma arte que deve ser levada a sério e praticada com disciplina espartana.

Esses são os requisitos básicos para perfilar-se com Baco e não com os relés mortais que se embriagam dia após dia sob o pretexto de afogar as mágoas. A bebedeira desenfreada não é religiosa nem mesmo benéfica ao espírito. Afinal de contas o homem que se entrega por longo tempo a embriagar-se se encontra servo da bebida e sem a retidão de personalidade necessária para se livrar do vício quando seu fígado ou discernimento e autodomínio já estiver corroído pelo álcool. Seria como se aprisionasse num alambique e sem saber como sair deste recipiente cavasse sua própria sepultura.

Não inspira prudência nem admiração àqueles que bebem por não serem capazes de evitar a tentação duma garrafa. Esse tipo de pessoa não passa de alvo da própria degradação pueril e sistemática duma moléstia que o levará a associações de auto ajuda. Seria sensato alertar aos incautos que beber e depois passar a se vangloriar e proferir uma repetição monótona de palavras vulgares se trata de perniciosa aberração não oriunda do estado ébrio, mas sim duma condição moral execrável e anômala a razão. Por tal motivo é que eles precisam se associar numa sessão de auto ajuda para fazer uma catarse das ações que fizeram sob domínio do álcool.

O acaso e a circunstância também não ressoa como motivo ideal para se embriagar. Todavia, pode-se tolerar aquele que bebeu nesses casos e não taxá-lo tolo, ficando apenas razoável ser taxado de imprudente caso dê algum vexame. O resultado desse tipo de embriaguez não é funesto como o primeiro daquele que bebe inveteradamente cotidianamente e por isso é passível de ser relevado.

Aqueles que possuem temperamento meio nervoso e irritadiço é recomendável que se embriague em locais adequados longe de armas e punhais para que  não venha a suicidar por uma taque de histeria compulsiva ou se tornar um potencial homicida do companheiro de algazarra ou muito menos premeditar e levar a cabo uma vingança pessoal em estado etílico.

O ato de se embriagar deve ser solene e amiúde a fatos que mereçam serem homenageados como uma bela noite de luar, um belo dia de sol, uma bela manhã de inverno ou uma bela tarde de outono. Contemplar o clima e a natureza tomando uma bebida adequada à situação é uma motivação aprovável e sensata para se embriagar.  

Outras motivações que são originalmente banais e também são aprovadas são aquelas que remetem a embriagar-se durante as festas de bodas e aniversários e até mesmo por ocasiões de funerais de entes queridos. Além disso, e sem sombra de dúvida, embriagar-se para comemorar o findar de mais um dia de labuta e trabalho é plenamente aceitável e edificante caso o indivíduo esteja apto a ir trabalhar no dia seguinte.

Recomenda-se ainda que os dias de descanso e finais de semana, bem como, os passeios noturnos sabáticos sejam regados a álcool e de preferência em companhia de mulheres insinuantes que estejam dispostas a consumir pouca bebida e a partir disso entrega-se aos prazeres da carne em ocasião posterior.

Devem ter notado que há um leque de opções amplo para que se possa embriagar de forma serena e sensata sem causar maiores transtornos e extasiar-se com momentos sublimes sob o efeito de um bom produto etílico seja com gelo ou in natura.   

Deveras o que não se pode fazer é incorrer numa sobriedade tão lamuriosa que quando se bebe se faça aquilo que venha a mente com um lampejar de tolice. Tais coisas devem ser feitas após a embriaguez, pois na verdade, a maioria delas sem dúvida serão atos tão insensatos e bestas que poderão arruinar a reputação de seu executor e lançar sobre o ato de embriagar-se má fama imerecida. E isso é imperdoável.